A Relação entre Música e Espontaneidade: Uma Reflexão Psicodramática.

A música provoca diversos estímulos cerebrais no ser humano trazendo um reflexo significativo em sua estrutura e reação psicoemocional, e, portanto, é relevante pensar sobre o elemento chave de tais reações, a espontaneidade. Define-se espontaneidade como caráter daquilo que é espontâneo, naturalidade, facilidade, mas seu sentido e significado são amplos e necessita de aprofundamento. A Teoria Moreniana de Jacob Levy Moreno traz a base principal para a reflexão proposta. O objetivo deste artigo é trazer uma reflexão, baseada no conceito de espontaneidade de Moreno, que aborde a música como meio de estímulo à espontaneidade humana em sua expressão, tema este, pouco explorado, considerando a espontaneidade um elemento fundamental à existência e à capacidade expressiva do homem.

Palavras-chave: Música. Espontaneidade. Espontâneo.

 

INTRODUÇÃO

 

Você tem que cantar como se não precisasse de
dinheiro, amar como se você nunca fosse se ferir.
Você tem que dançar como se ninguém estivesse
olhando. Isso tem que vir do coração, se você
quiser que dê certo.
(Susannah Clark apud Shapiro)

 

A música é apreciada no mundo inteiro de forma peculiar e única, mas ao mesmo  tempo traz identificação ampla, que consegue abranger muitas pessoas de diferentes culturas, costumes e vivências. A vivência do ser humano com a música vem de muitos e muitos séculos, e quem gosta de música não precisa ser músico profissional nem tão pouco entender sobre o assunto, pois a apreciação musical é algo nato ao ser humano, sua natureza é constituída com este elemento desde muito pequeno.

O ser humano é simplesmente “tomado” pela música, o som, a sonoridade, os arranjos, combinação de instrumento, vozes, ritmo, melodias, harmonias e tudo mais que compõem uma canção tornam-se um meio de no qual as pessoas são provocadas a terem diversas sensações, emoções, experiências que estimulam o corpo a variadas reações, de forma que tais reações, corporais e/ou mentais, na maioria das vezes, são emitidas de maneira automática, ou seja, sem controle algum, quase que instantaneamente.

Não são poucos os relatos que trazem em seu discurso a frase de que “a música me leva para outro lugar”, o que nos leva a acreditar que a música é uma forma de expressão artística capaz de despertar no ser humano sensações fortes o suficiente que levam a sua mente ao “delírio”, ou seja, a imaginar, a criar, a vivenciar momentos que podem parecer estar em um plano paralelo à realidade vivida no presente (RUUD, 1190; SEKEF, 2002; SEKEFF, 2002; LIMA, 2003; MUSZKAT, 2012; ROCHA; BOGGIO, 2013).

Ao longo nos anos, a música tem sido alvo de muitos estudos abrangendo as mais diversas áreas, tais estudos têm destacado que ela (música) não se limita apenas como um meio de expressão artística ou uma forma de entretenimento, mas mostra-se eficaz inclusive como meio de tratamento na área da saúde, mostrando-se eficaz e extremamente útil em casos de saúde mental, emocional e psicológica (BORCHGREVINK, 1991; BERGOLD; ALVIM;
CABRAL, 2006; BRÉSCIA, 2009; BRETAS, 2013; SIQUEIRA; LAGO, 2012).

Nos diversos estudos e pesquisas em neurociência a música mostrou-se como uma forma de estímulo que atinge o cérebro de forma ampla, capaz de atingir diversas áreas, estimulando neurônios a realizarem uma variedade de ligações sinápticas tanto através do sistema auditivo quanto pelo sistema senso-perceptivo, através das vibrações detectadas pelos órgãos do sentido, além de promover ativação considerável do sistema límbico, relacionado à
intuição e ao sentimento (ANDRADE, 2004; MUSZKAT, CORREIA; CAMPOS, 2000; MUSZKAT, 2012; ROCHA; BOGGIO, 2013; VARGAS, 2012).

Se a música é capaz de provocar tais estímulos cerebrais no ser humano, há de se buscar entender o elemento chave de tais reações a ela, a espontaneidade, que, de acordo com o Dicionário Aurélio online (FERREIRA, 2013), define-se pelo caráter daquilo que é espontâneo, naturalidade, facilidade. Tal definição é limitada, não sendo possível trazer um esclarecimento mais amplo e conceitual, e para tanto, precisaremos lançar mão da área de estudos sobre comportamento humano para entendermos melhor o conceito, a psicologia, que aponta para o estudo de fenômenos, considerando o contexto em que estes ocorrem. Desta forma é preciso aprofundar-se a respeito da espontaneidade para que haja maior compreensão a seu respeito.

O principal pesquisador e estudioso sobre a espontaneidade, dentro da área da psicologia, chama-se Jacob Levy Moreno, idealizador da linha do Psicodrama. Seu conceito e definição será a base principal para a reflexão proposta sobre a relação entre música e espontaneidade. Este artigo tem como objetivo trazer uma reflexão, baseada no conceito de espontaneidade de Moreno, sobre a influência da música como meio de estímulo à espontaneidade humana, sendo apresentada como um dos principais e mais importantes meios de ligação entre o homem e suas emoções, capaz de provocar reações involuntárias em relação à mesma, buscando trazer um sentido reflexivo sobre a expressão popular “tomado pela música”, em relação à reação espontânea, ou seja, sem pensar muito no que está fazendo ou o porquê de estar agindo de determinada forma naquele exato momento, induzido, portanto, pelo potencial “poder” da música.

O elemento espontaneidade em relação à música é um tema pouco explorado, e, portanto, importante foco de reflexão para que se possa entender um pouco mais sobre os despertamentos comportamentais e emocionais de expressão e reação que a música provoca no ser humano e o quanto ela pode contribuir para o estímulo e incentivo à expressão  espontânea, considerando a espontaneidade um elemento fundamental à existência e à capacidade expressiva do homem (COELHO, 2013).

O presente trabalho é uma revisão bibliográfica do tipo exploratória, tendo como objetivo proporcionar familiaridade com o tema, no intuito de construir hipóteses, sendo, portanto, “realizado especialmente quando o tema escolhido é pouco explorado e torna-se difícil formular hipóteses precisas e operacionalizáveis sobre ele” (GIL, 2008, p. 27), baseada em uma pesquisa limitada as produções nacionais, ou seja, produzidas no Brasil escritos em português. A pesquisa utilizou-se do veículo de acesso a publicações disponíveis na INTERNET, através de buscas realizadas nas seguintes plataformas: Biblioteca Virtual em Saúde Psicologia (BVS-Psi) Brasil; Periódicos Eletrônicos em Psicologia (PEPSIC); Scientific Electronic Library Online (SciELO); Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM) e na página da Federação Brasileira de Psicodrama (FEBRAP).

 Jacob Levy Moreno e a espontaneidade

Dedicou-se ao teatro durante a maior parte de sua juventude, e esta dedicação trouxe lhe referências para elaborar sua teoria enquanto psicólogo e psicoterapeuta, buscando revolucionar essa forma de expressão cultural, criticando os tipos de ensaios minuciosos realizados pelos atores, que de acordo com ele, trazia pouca produção espontânea. Desta forma, Moreno descobriu a potencialidade terapêutica do teatro e inicia sua trajetória para desenvolver sua teoria da espontaneidade a partir de suas experiências com o grupo, transformando o Teatro Terapêutico no Psicodrama Terapêutico, quando em 1925 inicia a estruturação e efetivação do Psicodrama, em 1931 introduz a Psicoterapia de Grupo como termo oficialmente científico, e em 1944 estabelece o Psicodrama como psicoterapia
(GONÇALVES; WOLFF; ALMEIDA, 1988; MONTEIRO, 1993).

Moreno, enquanto psicoterapeuta, no desenvolvimento de sua teoria direcionada a espontaneidade, considerou a dificuldade que a maioria das pessoas possui de conseguir se expressar, seja verbalmente, com o corpo, expressão facial, emoções e etc, e assim, para melhor compreender este processo, identifica a necessidade de retomar ao conceito de catarse tanto de Aristóteles quanto o trazido pelas religiões orientais. Aristóteles refere-se a catarse como a liberação de uma descarga de emoções, como por exemplo um espectador quando assiste a um espetáculo de tragédia grega, e as religiões orientais trazem a figura do santo, que antes de salvar alguém, precisa praticar ações para salvar a si mesmo. Portanto, identifica-se que enquanto uma limita-se a uma catarse passiva, situada no campo simbólico, e a outra, sugere uma catarse ativa, situada no sujeito vivo em busca de purgação (FOX, 2002).

Após diversas experimentações e pesquisa, Moreno chega ao formato ideal de sua teoria e prática psicoterapêutica, desenvolvendo técnicas que aprimoraram suas práticas enquanto psicodramatista, estabelecendo assim, o Psicodrama, definindo a espontaneidade como a teoria da ação, e de acordo com sua definição, a espontaneidade é a experiência de uma ação livre, que diz respeito ao ser espontâneo e criativo do homem, na sua relação com o
mundo e com o outro (MORENO, 1997).] Para Moreno a espontaneidade é considerada um fator, denominado fator “e”, que nasce com o ser humano, surgindo diante da condição favorável que Moreno chamou de status nascendi, sendo este o momento do nascimento da criança, em um estado livre para experimentar e agir sobre o momento de nascer de forma autônoma (GONÇALVES; WOLFF; ALMEIDA, 1988).

De acordo com seus estudos, a espontaneidade foi sendo perdida ao longo dos anos e esta perda tem forte ligação com as conservas culturais (conjunto de regras socialmente aceitas) que pouco a pouco foram bloqueando e barrando a manifestação livre do homem, considerando que desde nossa ancestralidade, a prática do “agir livremente” foi (é) considerado uma ameaça, por temer o não controle das manifestações sociais e individuais da  massa, garantindo uma herança cultural de regras e padrões transmitidos de geração para geração (MORENO, 1977).

Para Moreno (1997) e de acordo com sua teoria da espontaneidade, não há um “limite de ação”, o que de fato existe é o lugar do momento, que conduz o pensamento humano durante toda a sua existência, é o momento de ser, de viver e de criar, ou seja, é no o lugar do momento que o indivíduo percebe o surgimento de algo novo, em um universo aberto e cheio com diversas possibilidades, percepção esta que se torna um estímulo para que a pessoa responsa à mudança, tornando aquele determinado momento particular e único, sem vínculo com momentos passados ou futuros.

 

O homem e a música.

 

O homem busca, desde muito pequeno, diversas formas de interagir e de se comunicar, antes mesmo de ter consciência disso, pois esta interação inata ocorre desde a vida intrauterina, quando tem o primeiro contato com o som através de um contato intenso com a mãe, experimentando as vibrações, conhecendo uma variedade de som, desde a vibração corpórea até a identificação do som da voz da mãe e de outras pessoas e coisas, aguçando sua percepção do mundo externo, percebendo este mundo, ainda não conhecido, através dos estímulos emitidos por ele (mundo), intermediado pela mãe, que ainda o “protege” em seu ventre (MATIAS, 1999; NUNES, 2009).

O primeiro reconhecimento de som após o nascimento é o da voz da mãe, onde o bebê automaticamente a identifica e a associa ao prazer relacionado ao calor, segurança e alimento, remetendo-o às lembranças de sua vida intrauterina, muitos destes sons externos, completamente desconhecidos, são identificados como ameaçadores, e portanto, por muitas vezes provocarão reações de medo, até que se tornem reconhecidos e aprendidos (SEKEFF,
2002). Conforme cresce, o homem vai aprendendo a conviver neste mundo, neste ambiente até então desconhecido e passa a experimentar formas de se comunicar, maneiras de expressar-se no mundo e a interagir, passando a compreender melhor esse universo sonoro que compreende a mistura de sons externos e internos (VYGOTSKY, 1991).

O ritmo do pulsar do coração da mãe é o primeiro contato que a criança tem em relação a música, é sua primeira referência de uma representação musical. Até mesmo antes de a criança conseguir falar é possível observar bebê tentando arriscar uma ou outra “cantoria”, chegando a produzir sons com a boca ao balbuciar (JEANDOT, 1977).

 

Nossas vivências enquanto seres em relação podem nos trazer consequências boas ou ruins, e tais vivências influenciam como crescemos e amadurecemos ao longo de nossa vida. Tudo o que aprendemos quando criança nos trará uma vida adulta de acordo com esses ensinamentos, seremos fruto de nossas vivências, desde os primeiros dias de vida, portanto, o desenvolvimento humano é construído nessa trajetória e sua fase adulta está empiricamente ligada a sua fase infantil, consequentemente aprendemos muito por imitação, portanto, observamos e repetimos comportamentos, e assim, nos tornamos reflexo de pessoas, ambientes e situações que identificamos neste meio (VYGOTSKY, 1991).

A Teoria Moreniana diz que somos direcionados e orientados por teorias de valores, e acabamos desenvolvendo pensamentos e comportamentos direcionados ao outro, havendo uma preocupação quanto à forma que o outro nos vê, nos avalia e nos julga, e é neste ponto que a Teoria de Moreno questiona sobre o quanto tais regras e valores estariam trazendo um bloqueio à expressão da subjetividade do homem, na maneira como se expressa e se mostra no mundo, destacando a importância do homem encontrar maneiras de expressar-se de forma autônoma e autêntica, sem reservas (GONÇALVES; WOLFF; ALMEIDA, 1988).

Dentre os diversos meios que o homem encontrou e criou para expressar-se no mundo, a música pode ser considerada uma forma de expressão significativa à sua subjetividade, enquanto arte, assim como o teatro a dança, a pintura, a literatura, etc. Para além das artes como um meio ou um fim em si mesma, a música conquistou espaço como meio terapêutico na promoção da saúde do homem enquanto prática terapêutica denominada Musicoterapia,
firmada por Everett Thayer Gaston em 1944 (Michigan State University) nos Estados Unidos, no intuito de trazer melhorias aos problemas tanto de ordem orgânica quanto emocional, trazendo benefícios à expressão de emoções, sentimentos e angústias (CHAGAS; PEDRO,2008).

A música tem sido alvo de vários estudos referentes às ciências humanas, a psicologia, por exemplo, que tem investidos diversos estudos e pesquisas para investigar sobre as ações e os efeitos da música no homem, avaliando o quanto esta arte tem interferido nas emoções e no comportamento humano, trazendo um destaque a sua relevância desde o início dos séculos tanto no meio social e quanto na própria cultura, influenciando na construção do ser humano desde os primórdios (VARGAS, 2012).

Portanto, refletir sobre a música enquanto meio e uma forma da expressão da subjetividade humana não pode estar limitada apenas à prática musical propriamente dita, mas se faz necessário entender como a expressão ocorre, o elemento que a impulsiona a existir, a ser efetiva de fato, e neste quesito é que apresenta-se o conceito da espontaneidade, que não é uma tarefa muito simples, tendo em vista a abrangência de diversos elementos existentes para que a mesma aconteça. Ser espontâneo nos leva-nos pensar um pouco mais sobre as formas de expressão manifesta pelo homem, dentre elas, a música, escolhida como foco para abordarmos sobre a espontaneidade enquanto elemento fundamental a expressividade do homem no contato com sua subjetividade do ser e do criar – a música.

A Música e a espontaneidade.

A música é um recurso utilizado tanto pela musicoterapia quanto pelo psicodrama como um auxílio na expressão do indivíduo, o que as diferencia é o instrumento de base, sendo que, enquanto para a música é um instrumento essencial e fundamental, para o psicodrama a música é um recurso terapêutico de resultados práticos, com significativos e significâncias importantes no processo da constituição do homem enquanto ser humano em ação no mundo (CRUZ, 2008; LIMA, 2003).

Sendo assim, a música não é mais vista apenas como uma forma de arte, com a finalidade, mas tem sido valorizada enquanto recurso importante e consideravelmente eficaz ao ajudar na promoção da qualidade de vida do das pessoas, trazendo melhorias em relação receptividade do indivíduo no contato com o mundo externo, auxiliando àqueles que possuem alguma dificuldade nos momentos de interação com o outro, na manifestação de suas angústias, expressão e elaboração de sentimentos e emoções, ajudando-os a externalizá-los . (RUUD, 1990).

Neste sentido, é muito importante trazer uma reflexão a respeito da música enquanto um caminho potencialmente eficaz de acesso à espontaneidade. Pensar em maneiras de condicioná-la como um recurso útil capaz de acessar conteúdos internos, trazendo-os à tona através da vivência e da experimentação musical. Tal recurso poderá proporcionar uma variedade de experiências atemporais, podendo surgir em nosso contexto como um apelo, na
tentativa incansável de se conseguir um contato mais próximo com a espontaneidade, no reconhecimento de si mesmo, de sua própria constituição enquanto indivíduo e ser em processo de construção de si mesmo. Portanto, assim, reconhecendo-se e aperfeiçoando-se mediante as experimentações e vivências que despertem e incentivem a espontaneidade na expressão da subjetividade e particularidade de cada indivíduo, respeitando as devidas particularidades e peculiaridades de cada ser, considerando-se a hipótese de que a música como uma porta escancarada de possibilidades ao ser expressivo e livre (COELHO, 2013).

Para que seja possível esta reflexão, se faz necessário retomar alguns pontos a respeito do conceito de espontaneidade definida dentro da Teoria Moreniana sob a abordagem do Psicodrama seguindo sua linha psicodramática. É preciso trazer o esclarecimento de que, ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, espontaneidade não é sinônimo de impulsividade. Impulso é associado ao descontrole ou diminuição do controle, levando o indivíduo a agir impulsivamente, vinculada à emoção e à ação. A espontaneidade remete-se a livre vontade, podendo estar presente tanto na forma de pensar e sentir (repouso) quanto no desempenho de uma ação/tarefa do indivíduo (MORENO, 1997).

A livre vontade pode ser uma condição própria que proporciona a nós, oportunidades únicas de criar, ou seja, dentro desta condição de ser/estar livre é que se poderá conseguir trazer algo novo ao mundo, colocando o ser criativo em ação. Uma pessoa criativa não implica necessariamente no fato dela ser automaticamente espontânea. Há uma diferença entre uma pessoa que é espontânea e criativa e uma pessoa criativa, mas pouco espontânea ou  não espontânea (MORENO, 1992).

Um indivíduo espontâneo e criativo consegue aproveitar melhor o recurso que possui a sua disposição, como inteligência, memória, aptidões, assim, mesmo que a segunda pessoa tenha todos estes adjetivos de forma superior a primeira, a espontaneidade que a primeira pessoa tem, faz com que tais recursos (adjetivos, qualidade, característica) sejam potencializados. Portanto, espontaneidade e criatividade não são concomitantes, classificam se como categorias diferentes, mas que podem se unir de forma estratégica, compreendendo que “a criatividade sem a espontaneidade não tem vida […] é vazia e abortiva” (MORENO, 1992, p.147), sendo uma substância e a outra catalisadora, respectivamente.

A espontaneidade através da música.

A forma mais primitiva do homem fazer música foi através da utilização da voz e do próprio corpo, e posteriormente, com o passar nos anos, foi se aperfeiçoando de acordo com sua necessidade, produzindo e criando meios de fazer música, construiu instrumentos musicais e elaborou a escrita musical, como forma de registrá-la e organizá-la (STEWART, 1987).

Moreno (1997), estudando a trajetória humana em relação a arte musical, observou que ao longo dos tempos o homem começou a ficar preso às formalidades e padronizações musicais, fazendo com que a sua espontaneidade fosse diminuindo (ou pouco usada) na criação de sua música, cedendo a formas conservadoras de produzir sua arte musical, e percebeu que nesse processo o homem começou a distanciar-se de sua essência criativa e ligou-se mais às conservas culturais no formato de escrita e notação musical, tornando-se menos propício à mudança e a liberdade de criação, limitando sua capacidade criadora, distanciando-se, assim, de sua essência espontânea em relação a manifestação e expressão musical, a forma primordial de produzir música, o corpo.

Diante da identificação de uma lacuna no que se refere atualmente como “bloqueio criativo”, na época identificada como dificuldade de desempenho (tanto na criação quanto em relação ao momento de se apresentarem em público), Moreno traz uma proposta de trabalho que traria uma abordagem na qual ele poderia trabalhar e desenvolver a espontaneidade nos músicos, músicos estes que necessitavam deste elemento (espontaneidade) para compor suas canções e expressarem-se artisticamente também para outras pessoas, além de proporcionar também às pessoas comuns o acesso à música, proporcionando um contato potencial em um ambiente livre criar sons, considerando o bloqueio que poderiam ter em relação ao sentimento de constrangimento por não serem “bons” para a música ou não saber fazê-la.  A esta técnica chamou de psicomúsica (VALONGO, 1993).

A psicomúsica é dividida em duas formas: forma orgânica e forma instrumental. Enquanto forma orgânica o próprio corpo é utilizado como o instrumento de execução musical considerando os elementos funcionais como a voz e sons produzidos através de batidas realizadas no próprio corpo, e a forma instrumental, por sua vez, realizada através da utilização de instrumentos musicais, exercendo funções diversas e cumprindo o papel de ser uma extensão da espontaneidade do organismo da pessoa (MORENO, 1997; VALONGO, 1993).

Ambas as formas são válidas e funcionais no que se refere ao trabalho da espontaneidade, destacando-se a importância de sempre considerar-se de forma essencial a maneira com que o indivíduo acessa tais formas, e a escolha a respeito da forma da psicomúsica (se orgânica ou instrumental) irá depender do público pretendido para o trabalho e do objetivo a ser alcançado (MORENO, 1977).

Resultados e Discussão.

Considerando-se os muitos estudos pesquisados, baseando-se em produções nacionais existentes no meio acadêmico, livros, artigos, monografias, foi possível analisar que existem muitos materiais produzidos que são voltados com o foco em entender os efeitos da música no  ser humano, abordando os mais diversos temas, tais como sua origem, forma de produzi-la, como meio artístico, expressivamente cultural e como objeto de execução prática, de forma geral voltada especificamente para entender este processo de contato e execução musical (VARGAS, 2012; SEKEFF, 2002; NUNES, 2009; CRUZ, 2008; LIMA, 2003; RUUD, 1990; MATIAS, 1999; VYGOTSKY, 1991; STEWART, 1987; JEANDOT, 1977). Devido à complexidade do tema que busca refletir sobre a relação entre música e espontaneidade, há ainda uma quantidade de material escassa no que se refere a ligação música-espontaneidade em relação a estudos de música em si, pois nota-se que a espontaneidade, na grande maioria dos estudos, mesmo sendo pouco citada ou referida, é tida como um elemento inerente à música, no entanto há lacunas significativas no que se refere a uma explicação ou conceito mais didático.

Sobre a espontaneidade, a referência fundamental está diretamente vinculada à psicologia, como sendo a ciência que estuda o comportamento humano, a espontaneidade é vista como uma característica fundamental ao ser humano, enquanto ser criativo e expressivo no mundo. A abordagem psicodramática mostrou-se, portanto, a teoria que mais se aproxima de uma definição conceitual sobre o que é espontaneidade e de que forma ela se manifesta, descrevendo o fenômeno de forma detalhada, lançando mão de práticas terapêutica efetiva e eficazes na utilização da música como recurso de acesso e estímulo ao comportamento espontâneo, de acordo com a vasta pesquisa e experiência de seu idealizador, Jacob Levy Moreno (FOX, 2002; GONÇALVES; WOLFF; ALMEIDA, 1988; MORENO, 1997).

No que se refere à abordagem a respeito da relação entre música e espontaneidade, novamente a referência está baseada nas experimentações teóricas do Psicodrama, direcionando sua técnicas dentro da Teoria Moreniana, valorizando a experiência musical enquanto elemento significativo de acesso e manutenção da ação espontânea e do despertar da característica denominada espontaneidade como elemento fundamental e essencial ao homem
em ação no mundo (MORENO, 1992/1997).

Atualmente não há estudos realizados em português em pesquisas brasileiras, de forma a expandir a discussão a respeito da efetividade prática do tema direcionado a relação estabelecida entre música e espontaneidade com foco e base na Teoria Moreniana, existindo, portanto, um espaço amplo para futuros estudos neste sentido. Em relação a experiência musical voltada para a utilização da música a prática técnica desenvolvida por Moreno, a psicomúsica se mostra como forma mais próxima ao entendimento e a vivência musical no intuito de proporcionar a busca, experimentação, descoberta e manutenção à espontaneidade do indivíduo (VALONGO, 1993; COELHO, 2013).

Desta forma, o que se retém a respeito deste tema é que a complexidade humana, ao encontrar o elemento música, de alguma forma sofre alterações significativas, sendo a espontaneidade um gatilho fundamental no quesito da expressividade humana, que de uma forma peculiar, externaliza seus conteúdos internos buscando meios e recursos para fazê-la compreendida, seja por identificação ou por exemplo.

 

Considerações Finais

 

Há, portanto alguns questionamentos a serem levantados quando diante da reflexão proposta a respeito da relação entre música e espontaneidade sob a ótica psicodramática. A música e sua prática durante muito tempo foi exercida como meio de arte, entretenimento, diversão, estudos sobre sua potencialidade terapêutica são muito recentes e ainda escassos, se comparados aos demais estudos na área com aprofundamento de temas diversos, considerados  e relevantes, inclusive, internacionalmente.

A grande inquietação que se expõe mediante a este estudo é pensar nos motivos reais que levam o homem a se conectar de forma intensa a esta arte, mas ao mesmo tempo ainda não saber explicar de forma aprofundada o “efeito” da música em relação ao seu comportamento livre, a forma com que este estímulo (música) o conduz em suas mais variadas reações quando despertado pela ação espontânea, na experimentação efetiva da espontaneidade.

Essa experiência nos parece passar muito rápido, deixando a impressão de durar muito pouco tempo, segundos, se é que se poderia imprimir uma unidade de tempo precisa de duração. Acredita-se, portanto, na plena necessidade de se produzir mais estudos e pesquisas que nos levem a buscar sanar este ponto de relação existente entre o recurso música e o elemento espontaneidade. De que maneira a música, o fazer musical e a vivência na experimentação do contato com a música poderia contribuir no auxílio da preservação de nossa espontaneidade? Como preservá-la e mantê-la ativa por meio deste recurso artístico de expressão? Seria possível estimular a espontaneidade precocemente no ser humano através da música? Há uma base sustentável para poder investigar se quanto mais cedo, ainda quando criança, formos estimulados através da música, como recurso potencialmente intrínseco à espontaneidade, maior será probabilidade de nos tornarmos, ainda na infância, crianças mais desenvoltas e espontâneas, projetando um futuro adulto também mais espontâneo? Compreende-se que o ser humano possui inúmeras capacidades, mas que o ser espontâneo está essencialmente ligado à sua natureza, e por mais que muitas vezes a oprima, seja involuntariamente ou por imposição de terceiros, esta, jamais deixará de fazer parte da
gênese humana.

 

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Nathalia Coelho – Graduada em Psicologia; Graduanda em Pedagogia; Pós Graduada em Musicalização Infantil.

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